21 outubro 2014

Fisco só fica com 5% da receita da venda de casas penhoradas


Cobrança coerciva. As penhoras têm penalizado milhares de famílias portuguesas, que ficam sem a sua única habitação quando o valor da venda das casas não reverte para o Estado.
Em 2008 a casa de Célia Brissos foi vendida pela Autoridade Tributária por causa de uma dívida de 5.000 euros de IVA. Célia estava desempregada e tinha a seu cargo três menores. A casa foi vendida por 82.000 euros, entregues na totalidade ao banco, e ainda assim insuficientes para saldar a totalidade da dívida que tinha com o crédito à habitação. Hoje, o banco continua a pedir-lhe mais 50.000 euros e a dívida ao Estado vai quase nos 10.000 euros. O caso de Célia está longe de ser a exceção. Do total da receita realizada com a venda de casas penhoradas pelo Fisco, apenas cerca de 5% reverte efectivamente para saldar dívidas ao Estado.

"Considerando que para muitos dos bens imóveis vendidos existem credores com garantia real [os bancos], a quase totalidade das cobranças realizadas não reverterá a favor do Estado, mas de terceiros, pelo que este meio processual apresenta-se como o mais dispendioso e o menos eficiente na directa realização dos interesses do Estado." A conclusão pertence ao Tribunal de Contas e consta do Relatório de auditoria à venda de bens penhorados realizado em 2009. A mesma conclusão é repetida no Relatório de auditoria sobre o sistema informático de penhoras automáticas de 2011, e também nos pareceres sobre a conta geral do Estado de 2010, 2011 e 2012.

O Tribunal de Contas é aliás a única entidade a fornecer informação suficiente em alguns dos seus relatórios que permita medir a eficiência desta medida. Em 2009, as vendas de imóveis pelo Fisco renderam 154 milhões de euros, um valor que representa quase 60% do total do valor depositado devido a valores penhorados. No entanto, depois de ressarcidos os credores preferenciais - os bancos - o Estado ficou apenas com 6,1 milhões de euros, ou seja, menos de 4% do total realizado com as vendas. 

"A taxa de aplicação é a mais baixa de todos os bens penhorados. Acaba por constatar-se que impedem sobre os imóveis outros créditos com preferência o que limita seriamente o objectivo da penhora e mostra a ineficácia, nesses casos, dos respectivos actos para os objectivos imediatos de cobrança", volta a escrever o Tribunal de Contas. 

Em 2011, o Fisco obteve 210 milhões de euros com a venda de bens. Destes, 203 milhões resultaram da venda de imóveis, mas apenas 11 milhões (5%) foram imputados ao pagamento das dívidas fiscais. Em 2012, o rácio ronda os 6%. 
Desde Dezembro de 2013 que o Diário Económico tem vindo a solicitar estes e outros dados ao Ministério das Finanças. Um pedido já, aliás, alvo de parecer positivo por parte da Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos, sem que o referido ministério tenha até hoje fornecido quaisquer elementos. 

Dada a comprovada ineficiência da medida e o elevado custo que representa para as famílias portuguesas, que se vêem privadas da sua única habitação, qual é então o racional desta medida? Em resposta enviada ao Diário Económico, fonte oficial da Autoridade Tributária começa por explicar que "a lei processual regula minuciosamente os actos do processo e a prática desses actos é imperativa, o que significa que os serviços da AT não podem optar por praticar esses actos ou abster-se de o fazer". Ou seja, a AT limita-se a cumprir a lei. 

Mais adiante fornece, no entanto, pistas que ajudam a compreender o fenómeno: "Esse facto [diminuição de venda efectiva de imóveis] revela a crescente eficácia dissuasora e de indução ao cumprimento voluntário que o sistema possui". Em resposta enviada ao Tribunal de Contas em 2010, a Direcção Geral de Contribuições e Impostos é mais directa: "A DGCI considera que a marcação de vendas é o instrumento mais eficaz de coerção do devedor para o pagamento das suas dívidas". Na sequência desta resposta, o Tribunal de Contas nota, no entanto, que a própria DGCI não identifica o valor que é contabilizado como receita do Estado face ao montante cobrado com a venda dos bens - é o Tribunal que reúne os dados e calcula a eficácia da medida. 

A marcação de vendas como elemento de coerção está aliás bem patente nos números de 2014. Só este ano, a AT já marcou a venda de 57.670 imóveis, mais do que a soma dos dois anos anteriores completos, e o dobro das marcações de vendas de veículos. Uma vez iniciado o processo, e sem que os valores sejam regularizados, a venda efectiva do bem é uma inevitabilidade, a menos que o devedor peça o pagamento em prestações da dívida (a qual obedece a critérios rígidos) ou recorra aos tribunais. O que significa que, face ao forte elemento de coerção aplicado, ficam sem casa as famílias que efectivamente não possuem qualquer meio de conseguir saldar a dívida em tempo útil. A AT refuta no entanto este entendimento, notando que "as situações de carência comprovada resultam normalmente no reconhecimento de isenções ou exclusão de tributação do pagamento de impostos [IRS e IMI]". A dívida de Célia era de IVA, porque um dia tinha tentado ter um pequeno negócio, o qual lhe havia de custar a casa.

Fonte: Económico

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