13 junho 2017

Em Olhão, as casas já valem o dobro


Estrangeiros procuram os centros históricos do Sotavento e preços disparam. Quando contou que vivia em Olhão, o inglês Kevin Gould ouviu do seu interlocutor, algarvio de Tavira: “Olhão? Mas estás a viver na Detroit do Algarve!”, lançou, referindo-se à má fama que ainda hoje persegue a cidade norte-americana, tida como casa de criminosos, foco de pobreza e violência. A mesma imagem ainda se cola a Olhão, terra de pescadores. 

“A cidade tem uma vibração que diz: ‘Nós somos olhanenses, não nos interessa quem vocês são, e nós só vos aceitamos enquanto vocês nos aceitarem.’ Foi essa autenticidade que me atraiu”, explica Gould, jornalista de viagens e gastronomia do “The Guardian”. Estava à procura de um sítio “menos turístico, mais verdadeiro”, sobre o qual escrever, quando descobriu a cidade algarvia. Depois de duas décadas a fazer mais de 50 viagens anuais, ficou.



Nos últimos anos, com a família, tem vivido entre Olhão e Londres, mas prepara-se para vender a casa inglesa e mudar-se definitivamente para Portugal: no início de 2018, fazendo proveito da sua formação como chefe, vai abrir um restaurante típico (“só com produtos algarvios, comprados nos mercados de Olhão”) no coração da Barreta — o bairro histórico construído pelos pescadores, primeiro com cabanas de junco e depois com casas de pedra e cal, de estrutura cúbica, com as açoteias e os mirantes, brancas. Nessas ruas sinuosas e pequenos becos, abandonados pela população local em direção às novas zonas urbanas, floresce agora uma comunidade estrangeira, que compra o que antes ninguém queria e reabilita as casas centenárias, à imagem do traço original de uma cidade, ainda conhecida como “cubista”. “Tudo se vende. Mais houvesse e mais se vendia. Se já não há na Baixa, então vai-se para zonas periféricas”, aponta Bruno Saraiva, à frente da mediadora Villas Saraiva e Pereira. Desde 2013 que a procura tem sido grande, mas o pico registou-se a partir do verão de 2016: “As moradias no centro começaram a escassear. Antes, era possível comprar ruínas típicas a €50 mil, agora valem o dobro. Temos imóveis a valorizar mais de 100%”, aponta o agente.

Com o mais cerrado sotaque olhanense convive agora o inglês, francês, alemão, holandês e italiano. Pintores, escritores, bailarinos e muitos reformados sentam-se ao lado do pescador que remenda as redes ou do vendedor de peixe. Apesar de estarem a mudar Olhão, querem que a cidade não mude. No final de 2016, quando o Plano de Pormenor da Zona Histórica de Olhão foi apresentado, incluindo, por exemplo, a construção de uma torre de 21 metros na Barreta e uma maior altura dos edifícios históricos, a população estrangeira acorreu em massa à discussão pública do documento, para mostrar a indignação. O plano acabou aprovado em abril, já com algumas arestas limadas. A construção da torre, que implicava a demolição de um edifício centenário, foi abandonada.

"Mais do que Detroit, a atmosfera que se está a formar em Olhão tem mais a ver com o que se passa em Brooklyn [Nova Iorque]. É funky. As pessoas gostam do facto de ser uma cidade com pessoas locais, que ainda não se transformou numa Albufeira e mantém as suas atividades. Olhão, como uma parte do Sotavento algarvio [de Faro a Vila Real de Santo António], é desorganizado, rude e autêntico. Sinto-me num filme de Fellini", diz Kevin, na sua sala branca e abobadada, com reminiscências árabes - que antes era uma oficina de bicicletas, armazém devoluto e ponto de encontro de toxicodependentes. O responsável pela reabilitação da casa é Filipe Monteiro, arquiteto português que depois de viver em Nova Iorque se mudou para a Barreta. No

bairro, já vai para as duas dezenas os edifícios que ajudou a requalificar, com as técnicas de construção mais típicas e um investimento total que rondará os €2,5 milhões. "O objetivo tem de ser melhorar e não destruir, Ou acaba-se com a mais-valia desta cidade", diz.

Recentemente, o "Financial Times" chamou ao Sotavento do Algarve "a costa ignorada", "pacífica e rural", em contraponto ao "deslumbrante `triângulo dourado', que cresceu à volta dos resorts de Vilamoura e Quinta do Lago". Enquanto a construção desenfreada ocorria no outro lado do Algarve, o estatuto de reserva ecológica da Ria Formosa restringiu os investimentos dos grupos imobiliários e turísticos. Com as praias mais longe, à distância de uma viagem de barco, os turistas preferiram outros pontos algarvios e a região preservou o seu estado (um pouco mais) selvagem.

300 famílias italianas

Mas esta acalmia é, agora, aparente, dado o frenesim de estrangeiros que entra e sai das agências imobiliárias olhanenses. Muitos reformados e profissionais de valor acrescentado (como artistas plásticos, arquitetos ou profissionais liberais) estrangeiros têm chegado à conta do regime fiscal dos  residentes não habituais, que permite isenções no IRS. Não há números sobre a comunidade estrangeira a residir em Olhão e arredores, mas serão "largos milhares", segundo várias fontes ouvidas. Só italianos, sobretudo reformados, serão "300 famílias": já existem até duas empresas especializadas, fundadas por conterrâneos, a prestarem assistência e informação aos interessados em morar naquela região. A maioria chega de Itália, mas também há muitos reformados que têm abandonado as segundas compradas no Magrebe, devido ao clima de insegurança instalado.

A cidade também passou a ser mais conhecida desde que, em 2010, o grupo Hotéis Real instalou a primeira unidade hoteleira de cinco estrelas na cidade, o Real Marina Hotel & SPa, com centena e meia de quartos, mais o Real Marina Residence, um empreendimento com 80 apartamentos de luxo — num investimento de €45 milhões. Atualmente, as taxas de ocupação média rondam os 85%. O grupo optou por praticar preços de quatro estrelas: "Com preços altos o suficiente, o hotel chamou mais pessoas e com poder de compra. Vêm em turismo, gostam e instalam-se", diz Bruno Saraiva.

Elsa Marques, da agência Top Marques, conta que em maio, pela primeira vez, vendeu casas com valores acima dos €300 mil, nos bairros mais centrais, da Barreta e do Levante. "E ainda em ruínas. Antes, ninguém as queria, eram consideradas caras", conta a agente, que nos primeiros cinco meses de 2017 já igualou o negócio de 2016. "Tinha um casal francês interessado nessa casa, mas que não se decidiu logo no dia da visita ao imóvel. Disse-lhes que se iriam arrepender. Passado dois dias ligaram-me a dizer que queriam ficar com ela, mas já uns suecos a tinham comprado", ilustra Elsa Marques. Em 2013, não havia mais de cinco agências a trabalhar o centro de Olhão. Atualmente, "são entre 25 e 30", contabiliza o agente Bruno Saraiva, "fora as dezenas de freelancers que estão a fazer prospeção imobiliária. Devemos ser mais de 100, o mercado já está saturado".

Quando decidiu mudar de vida e deixar Paris, em 2015, Claudia Lichtenstein, de 49 anos, escolheu Olhão para viver, a terra dos avós. Pensava continuar a escrever para blogues de moda, como sempre tinha feito enquanto jornalista e especialista em redes sociais. Todos os dias ia colocando fotos da reabilitação da casa comprada no centro de Olhão no Instagram, maioritariamente seguido por franceses. "Começaram a pedir-me para fazer prospeção de casas. Agora, ajudo a encontrar imóveis, acompanho as obras e, se necessário, faço a decoração", conta. Atualmente, tem em curso três obras, duas de parisienses e uma de um monegasco que vive em Marraquexe. Também investe: "Cheguei a comprar uma ruína por €50 mil e, depois de gastar mais €40 mil, vendi por €150 mil. Compensa muito, mas esses preços já não existem." Já houve quem lhe quisesse comprar a sua própria casa, que lhe custou €180 mil, por "mais de €350 mil".

A freelancer imobiliária explica que há quem compre para viver, mas muitos investem para depois vender ("franceses, belgas, canadianos"), e há quem compre para arrendar, através de plataformas como o Airbnb. No caso da inglesa Tara Donovan, a solução é um híbrido: faz da Casa Fuzetta a sua segunda residência, mas também um espaço de alojamento local, com 12 quartos. O edifício resulta da junção de três edificações, uma delas imóvel de interesse público, que estava prestes a ser demolido quando o marido de Tara o encontrou — tal como acaba de acontecer com o Grémio Olhanense, que, "por estar nas mãos de privados, a autarquia nada pôde fazer", referiu ao Expresso o presidente da Câmara, António Pina.

Tara, que queria mudar de ritmo de vida depois de ter sido durante 12 anos responsável pela área de media do chefe Jamie Oliver, decidiu arriscar e, depois de um "grande investimento", nasceu a Casa Fuzetta, um espaço que "mistura o histórico e o místico" e onde Tara quer receber " amigos, pessoas com interesses comuns, que se reúnam em retiros artísticos, espirituais e workshops. Quero que aqui nasçam ideias que tenham impacto positivo na vida dos olhaneneses. Não quero mudar nada na cidade, isto é um paraíso".

Fonte: Expresso

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